Noites Brancas Eletrônicas

Postado por: Contato
10/04/2019 às 19:34

Olhe por uma nesga da porta do quarto do seu filho: sete em cada dez adolescentes utilizam algum aparelho eletrônico antes de dormir. O impacto negativo desse hábito na qualidade do sono foi sempre uma certeza dos pais, mas não havia comprovação científica tão certeira. O maior estuda já conduzido sobre o assunto, publicado na revista científica Environment International, decretou o fim das dúvidas: sim, usar smartphones, tablets, laptops e videogames na escuridão do quarto.

Ficar conectado no breu até uma hora antes de dormir é ainda pior do que fazê-lo com a luz do quarto acesa. Cinco vezes pior.

O efeito prejudicial do uso de telas no escuro tem uma base fisiológica e outra comportamental. A fisiológica: quando a luz da quarto está apagada, a pupila se dilata, e os olhos ficam ainda mais expostos à incidência de claridade proveniente das telas, chamada "luz azul". É um tipo de luz com grande interferência no organismo porque a cor azul inibe a produção do hormônio que induz o sono, a melatonina. Tal substância é essencial para regular ciclos de sono e vigília. Alguns modelos de celular já vêm com uma película de proteção contra essa fonte luminosa ou estão equipados para neutralizar a luz azul à noite —o objetivo dessas novidades é diminuir quase totalmente a emissão de luz azul, filtrando-a.

Agora, a base comportamental: a luz azul "engana" os pais. "O adolescente que fica no quarto escuro, em tese, não estaria mais acordado, e os pais não desconfiam que possa estar conectado nos aparelhos.", diz a neurologista Andrea Bacelar, da Associação Brasileira do Sono.

O estudo, conduzido pelo Imperial College London, no Reino Unido, foi feito com 6.616 jovens com idade média de 12 anos, usuários de todos os tipos de tela e para os mais diversos fins—tanto para estudo como para diversão. Os adolescentes responderam detalhados questionários para medir o papel dos aparelhos no sono e na qualidade de vida. Os que utilizavam dispositivos antes de dormir tinham noites de descanso mais curtas (o ideal nessa fase da vida são os menos nove horas de repouso) ou sofriam para pegar no sono. Além disso, despertavam várias vezes durante a noite ou acordavam mais cedo que o normal. O trabalho mostrou que o aparelho mais usado é o smartphone, seguido do tablete.


Um sono ruim afeta drasticamente a vida de qualquer pessoa. Na adolescência, o impacto no corpo é ainda maior.

Nessa fase, a necessidade de sono vem, em especial, de uma mudança fundamental no organismo: a puberdade. Para que essa condição, caracterizada por uma revolução hormonal, se realize plenamente, é preciso que o adolescente tenha um sono reparador—do contrário, ele poderá sofrer prejuízos ao longo do desenvolvimento. A falta crônica de sono (que significa dormir muito pouco, menos que as tais nove horas, ao longo de um mês, no mínimo) acarreta a liberação de mais cortisol, o hormônio associado ao stress. Com isso, eleva-se o risco de oscilações bruscas de humor, depressão e transtornos de ansiedade. É também durante o sono que o corpo aumenta a liberação de GH, hormônio do crescimento ósseo e muscular. Em outras palavras: o adolescente cresce quando dorme.

O risco de obesidade é igualmente maior nos jovens que dormem pouco, pois os hormônios relacionados ao ciclo de fome e saciedade, como a grelina e a leptina, são produzidos durante a noite.

Se não se dorme direito, o impacto imediato também é péssimo: em relação á escola, destacam-se faltas e atrasos, dificuldades de atenção, problemas de memória, concentração e aprendizagem, que levam à redução no desempenho escolar. Despontam também problemas comportamentais, com uso e abuso de drogas, acidentes de carro e baixa imunidade.

Apesar de todas as evidências científicas, a batalha para afastar um filho da tecnologia é inglória. Há solução? Talvez não, mas convém um pouco de bom-senso. Um caminho é estabelecer regras. "Tentem fazê-lo deixar o celular carregando no corredor durante a madrugada.", diz a neurologista Andrea Bacelar. Boa sorte aos pais.


Fonte: Revista Veja, 20 de março de 2019